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LILITH, A SERPENTE: O LADO ESCURO DA LUA

Sidneya Magaly Gaya

Além de uma deusa proscrita, como a conhecemos, Lilith representa a cisão do feminino, tanto no nível individual como coletivamente, onde a liberdade, a instintividade e a expansão da consciência devem submeter-se à dominação e aos tabus vigentes. Sendo assim, tais buscas de evolução - naturais e atávicas - no campo da experiência humana, acabaram por ser reprimidas com violência, restando apenas a tais conteúdos a opção de atuarem nas sombras do inconsciente.

A Lua Negra ou Lilith, aparece em vários mitos. Sem dúvida, o mais conhecido é o judaico, que a coloca como a primeira mulher de Adão. Segundo consta, nasceu do mesmo material que seu companheiro; o pó da terra, sendo, assim, sua igual. Reclamou então seus direitos, afirmando serem os mesmos que os do parceiro, negando, desta forma, a supremacia masculina e recusando-se ainda aos papéis mais convencionais e submissos, como ficar sob o parceiro durante o ato sexual e a maternidade.

Foi assim que a deusa proferiu o inefável nome de Deus e fugiu do Paraíso. Adão recebeu então a submissa Eva; feita a partir de sua costela, e, portanto, conformando-se com a autoridade dele.

Outra variação do mito diz que Lilith habitava o Éden antes mesmo de Adão e que foi ela que o originou. Antes de estar plenamente desenvolvida, insurgiu-se contra a união de Adão e Eva, copulou com a Serpente e abandonou o Paraíso, havendo ainda a variação de ter ela própria se transformado em Serpente e chamado Adão e Eva à perdição.

Após deixar o Éden, percorre, errante, caminhos sinistros, enlameados, interagindo com os demônios.

Deus mandou seus anjos que a chamassem de volta, mas Lilith recusou-se, dizendo ser tarde demais. Fez então um trato com os anjos de respeitar os locais guardados por seus nomes sagrados.

Lilith foi para o deserto, de terras vermelhas, e, mais tarde, subiu aos céus, onde tentou entrar encantada com os pequenos rostos, dos Querubins. Deus, porém, a expulsou, ordenando-a que voltasse à Terra, onde seria seu instrumento de punição, para seduzir mortais bem como assassinar crianças. Dizem, também, que no dia da Reconciliação, a deusa "guincha" em altos brados, para que seus gritos cheguem aos céus.

Para invocá-la ou neutralizá-la, os antigos habitantes da Tessália golpeavam caldeirões de bronze ou tocavam címbalos. Invocavam-na largamente para acalmar ou deliberar as energias sexuais, aumentar o desejo, o prazer, e diminuir a fertilidade.

A Serpente, sempre presente, alude à antiga analogia do início dos tempos, o uroboros, a deusa-mãe, as profundezas fluidas do inconsciente, sobre as quais não temos controle algum e, tal como o próprio Zeus, devemos respeitar. Sua fuga ao deserto vermelho é o próprio caminho de individuação, onde rompemos com tudo o que nos traz segurança, confiando apenas na supremacia da mente, um movimento de separatividade e convicção interna, que como para Lilith, não pode ter retorno.

Como assassina de crianças, representa a capacidade e premência de estrangular a infantilidade e as ilusões sem fundamentos, em nome do amadurecimento. Seu potencial sedutor é o inconformismo, a revolta inerente à espécie humana que quer sempre mais, mesmo aquilo que não pode ter, os desejos gritantes, com seus ressentimentos, desesperos e auto-traições.

Trata-se sempre da conexão com os desejos, os instintos, o lado sombrio da vida, as armadilhas e o crescimento em que implicam. Segundo Jung, se o despertar da Lilith pode ser trágico para uma pessoa despreparada, é uma prerrogativa à individuação.

No Egito, correlaciona-se com a deusa Ísis, freqüentemente representada com cauda de serpente, soberana dos partos, do amor sensual, da morte e dos renascimentos. Chamada "Rainha do Céu", esta deusa lunar era invocada nos ritos de magia e feitiçaria. Com seu poder ímpar restituiu à vida seu irmão e amante Osíris, morto no inferno por seu irmão-sombra Set.

Na Grécia, correlaciona-se com a deusa Hécate, soberana da magia lunar da morte e do nascimento, dos ritos mágicos, dos encantamentos e do destino. Com três faces, esta deusa está presente em cada fase, cada encruzilhada do caminho, desde os momentos de mais luz até os de mais escuridão, aumentando o senso de convicção interna, o propósito ou a compulsão de seguir os próprios desejos e crenças, e a coragem de cortar com tudo a que nos vinculamos, em nome desta jornada.

Filha de Hera, foi testemunha direta e emocionalmente distanciada do rapto de Perséfone, ainda na infância. Esta antiqüíssima divindade roubou de sua mãe um pote de carmim; precisou então fugir de sua mãe que ficou furiosa. Deixou o Olimpo e foi para a Terra, assistiu um parto e tornou-se impura, precisando descer aos infernos para ser purificada. Nas regiões abissais, tornou-se Rainha e presidia os ritos de purificação e expiação. Tinha o poder de enviar demônios para atormentar a humanidade durante seus sonhos. Podia também negar ou conceder qualquer desejo aos mortais. Cérbero, o cão de três cabeças, guardião da porta do inferno, era seu animal de estimação e as Erínias (deusas do Destino), suas companheiras.

Os gregos colocavam suas estátuas nas encruzilhadas onde houvesse ocorrido um crime. A ela, também, a feiticeira Medéia rendia homenagem para purificar-se de seus delitos e receber proteção em sua jornada.

Essa deusa virgem é auto-erótica e tem ainda o dom de envenenar seus adversários, podendo castrá-los ou iniciá-los, conferindo poder ou estagnação. Com sua magia, toca de maneira singular na superfície e nas profundezas. Na maioria das vezes seus ritos encenados em nossas vidas são ininteligíveis por nosso raciocínio.

Enquanto as deusas femininas presidem algum tipo de relacionamento, Lilith evoca a separação em nome do resgate e priorização das buscas individuais. Sua oposição a Eva nos sugere que sua sustentação depende somente de si mesma, seu fortalecimento, seus dons de magia e seu poder de co-criadora, jamais dos referenciais de relacionamento ou da submissão aos códigos externos.

O resgate deste arquétipo é, portanto, o ponto crucial que nos acompanha não uma, mas várias vezes na vida, com seus momentos de desconexão com os parâmetros exteriores que em algum momento nos emprestaram segurança, a negação e a fuga destes parâmetros, a solidão e o desolamento a que nos remetem a experiência, a clarificação e a estruturação de nossos valores internos no deserto, e a reconquista de nosso poder e plenitude pessoais.