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O EGOÍSMO ESPIRITUAL

José Moreira

Se bem que as duas palavras, egoísmo e espiritualidade, pareçam incompatíveis, e, por conseguinte, inteiramente estranhas uma à outra, acham-se, na prática, freqüentemente unidas.

De fato, o egoísmo tem raízes tão tenebrosas dentro de nós que, muitas vezes, quando o julgamos aniquilado, ele ainda vive nas profundezas ignoradas do nosso ser e explode subitamente à superfície, disfarçado com a máscara dos mais nobres sentimentos. As pessoas sinceras que aspiram ardentemente encontrar a verdade, infelizmente não estão isentas disso e nada é mais doloroso do que um dia perceber que caíram, sem suspeitar, na armadilha do egoísmo espiritual, que deixaram o caminho da simplicidade, da pureza, para recaírem na voragem do culto pessoal. A fim de poupar essa grande agonia, devemos estudar os sintomas dessa hedionda doença interior.

O egoísmo espiritual, como seu nome indica, é a procura e o amor exagerado do "eu" nos pensamentos, nas palavras ou ações que têm a pretensão de serem absolutamente desinteressados pelo seu caráter de puro idealismo.

O egoísmo espiritual consiste em fortalecer o nosso "eu", ou aumentá-lo, dilatá-lo, em detrimento da desejada meta coletiva: é amar a si próprio mais que a causa, é substituí-la sutilmente por sua satisfação, sua consolação, seu conforto e bem-estar próprios, sempre se persuadindo que os atos tendentes a essa satisfação, essa consolação, provêm todos dos mais altruísticos pensamentos.

Dir-se-ia que esse aspecto do egoísmo espiritual é o mais grosseiro, pois nutre-se de indolência, de preguiça e de tudo que interessa ao corpo. Contudo, não é tão perigoso porque ele se desmascara por si mesmo; mas existe um outro, mais difundido e mais pérfido, pois suas raízes se desenvolvem no "eu" intelectual que é, na maioria das vezes, o mais terrível dos nossos adversários.

O egoísmo, naquilo que concerne à vida da inteligência posta a serviço da espiritualidade, revela-se geralmente por uma idéia ambiciosa, confessa ou não, que o faz nascer. Nesse caso, o egoísmo espiritual inspira o desejo de se avantajar, de crescer, de se irradiar entre os outros membros de uma sociedade idealista, de ter postos elevados, honrarias, aplausos, felicitações, estímulos, sucessos oratórios, etc; o egoísmo espiritual insufla todas essas coisas e muitas outras, porém o mais terrível é que a alma crê estar no caminho reto, não passando contudo de uma vítima, escrava do orgulho.

O egoísmo espiritual toma facilmente por extensão, uma forma de domínio e de amor ao poder. Querer forçar os outros a ter suas opiniões, sua maneira de ver e compreender e de ser compreendido, da necessidade insidiosa de glorificação pessoal e de domínio sobre os outros.

O egoísmo espiritual é filho do orgulho; fica despeitado, sem confessá-lo, e, quase inconscientemente, com o sucesso alheio; teme que os circunstantes compreendam melhor a Verdade do que ele. É o torneio das idéias, o duelo dos argumentos onde se insinuam a malevolência, a inveja sob a máscara da falsa admiração, as intriguinhas e os falatórios espirituais, se me permitem a expressão, os quais nada têm a ver com a Verdade e sua soberana simplicidade.

Para se palmilhar o caminho da retidão, livre de todo o egoísmo pessoal, é preciso saber amar com simplicidade, com abandono, com uma flama calma e pura, a vida, a verdade; amá-la sem esperança oculta de um ganho pessoal ou de triunfo, e não somente considerá-la e dissecá-la como um animal morto. Não há maior prova de amor que dar a vida por aqueles a quem se ama, disse Cristo no Evangelho. Poder-se-ia acrescentar que não há modo mais nobre de amar seu ideal que dar a vida por ele, não a vida do corpo, mas a vida do egoísmo, do "eu", da personalidade.

Lembremo-nos que, para atingir a perfeição, fonte da eterna felicidade, não devemos viver, porém morrer, no tocante ao "eu" fechado e enamorado de si mesmo; lembremo-nos que não somos nós que nos reuniremos à Vida, pela expansão do nosso ser, porém, será Ela que nos envolverá, nos banhará, nos tragará em sua Eternidade, derrubando os muros do egoísmo, varrendo todas as barreiras, como o Oceano submerge uma fortaleza em seu ímpeto irresistível. Esse "eu", essa fortaleza, supremo refúgio de ilusões e trevas, o egoísmo espiritual nos impele a consolidá-lo e a ampliá-lo em benefício da causa. Que ironia, que armadilha perigosa!