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NOSSOS AMIGOS ANIMAIS
AS RAÍZES RELIGIOSAS DO ESQUECIMENTO DA DOR DOS ANIMAIS NÃO HUMANOS

Chara e Ananda

Ao nos depararmos com a terrível realidade da devastação da natureza e do holocausto animal em nosso planeta, na maioria das vezes não temos idéia dos conceitos que se escondem por trás da relação doentia do ser humano com outras formas de vida. Daí a importância de buscarmos compreender as raízes de ações tão agressivas e desrespeitosas para com a vida.
O texto abaixo pode nos ajudar em nossa reflexão e é parte do seminário realizado em setembro de 2006 pelo defensor da causa animal José Antônio Pereira Machado no curso de Bioética da Fiocruz com o tema: "Sofrimento e alienação: a não reflexão do homem sobre o direito ou não de causar dor ou morte aos animais sencientes"

PARTE 2:
RAÍZES RELIGIOSAS

Então Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele domine os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra. E Deus criou o homem à sua imagem. E Deus os abençoou e lhes disse: Sejam fecundos, multipliquem-se, encham e submetam a terra; dominem os peixes do mar, as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam sobre a Terra". (Gênesis 1: 26-28 ).

Deus abençoou Noé e seus filhos, dizendo: "Sejam fecundos, multipliquem-se e encham a Terra. Todos os animais da Terra temerão e respeitarão vocês: as aves do céu, os répteis do solo e os peixes do mar estão no poder de vocês. Tudo o que vive e se move servirá de alimento para vocês. E a vocês eu entrego tudo, como já lhes havia entregue os vegetais..." (Gênesis 9: 1-3 ).

É importante ressaltar que o Cristianismo herdou da tradição judaica o pensamento de que só os seres humanos entre todos os seres viventes na Terra, é que possuem uma alma imortal, estando assim destinados a uma vida após a morte.. Foi esta noção que introduziu principalmente no ocidente, a idéia de caráter sagrado da vida humana - e apenas a vida humana.

Em mais uma passagem da Bíblia, agora São Paulo questiona a Lei de Moisés que proibia que se amordaçasse o boi que estivesse a comer os grãos. Dizendo:
...Por acaso é com os bois que Deus se preocupa? Não será por causa de nós que ele fala assim?... ( Coríntios 9: 9-10). Santo Agostinho importante filósofo do período medieval e grande teórico do Cristianismo escreve:
"O próprio Cristo mostra que o refreio na morte dos animais e na destruição das plantas constitui o auge da superstição, pois, julgando que não existem direitos comuns entre nós e os animais e as árvores, ele mandou os demônios habitarem uma vara de porcos e, com uma maldição, secou a árvore onde não achou fruto."

Assim como os romanos colocavam criminosos e prisioneiros de guerra fora da esfera da preocupação moral, ou seja, não eram considerados pacientes morais, jogando-os na arena para se divertirem vendo eles serem devorados pelos leões, o cristianismo deixou também os animais não humanos fora dos limites de preocupação moral, com isso, não sendo considerados pacientes morais.

São Tomás de Aquino talvez o mais importante filósofo da época medieval e um dos maiores expoentes do pensamento cristão, escreve:
" Não é pecado utilizar as coisas para o fim a que se destina. Ora a ordem das coisas é tal que o imperfeito serve o perfeito...As coisas, como as plantas que têm simplesmente vida, são todas iguais para os animais, e todos os animais são iguais para o homem. Por conseguinte não é proibido utilizar as plantas para o benefício dos animais e os animais para benefício do homem...Ora a utilização mais necessária parece consistir no fato de os animais usarem as plantas, e os homens usarem os animais, como alimento, e isto não pode ser feito sem que aqueles sejam privados de vida, e, portanto, é permitido tanto tirar a vida às plantas para o uso dos animais como os animais para o uso do homem. Assim se obedece ao mandamento do próprio Deus." ( Summa Theologica 2, 2, Q64, art.1. ).

Peter Singer no livro "Libertação Animal", fala que, para S. Tomás de Aquino em sua classificação do que seriam os pecados, estes só existiriam quando fossem contra Deus, contra nós mesmos, ou contra o nosso próximo. São Tomás em sua Summa Theologica, não abre a possibilidade de pecados contra os animais não humanos ou contra o mundo natural. S. Tomás nunca diz que a crueldade para com os animais irracionais é errada em si mesma. Desta maneira os limites da moral em sua filosofia excluem os animais não humanos.

"Não interessa o modo como o homem se comporta com os animais, pois Deus submeteu todas as coisas ao poder humano e é neste sentido que o apóstolo diz que Deus não se preocupa com os bois, porque Deus não pede contas ao homem daquilo que este faz aos bois ou a outro qualquer animal." ( Summa Theologica 2, 1, Q102, art.6 ).

A influência de S. Tomás foi duradoura. Em meados do séc.XIX, o papa Pio IX recusou o estabelecimento de uma organização contra a crueldade para com os animais em Roma, argumentando que a sua existência sugeriria que os seres humanos têm deveres para com os animais. E podemos encontrar esta descrição ainda na segunda metade do séculoXX, sem grandes alterações da posição oficial da Igreja Católica Romana." (SINGER, Peter. Libertação Animal. Ed. Via Óptima, pág. 183 )."

Segundo Singer, foi só em 1988, que a Igreja Católica começou a mudar de postura na sua relação para com os problemas ecológicos. Ele cita:
"O domínio conferido ao homem pelo Criador não é um poder absoluto, nem se pode falar de uma liberdade de "usar e abusar", ou de dispor das coisas como melhor agrade... Nas relações com a natureza visível, nós estamos submetidos a leis, não só biológicas, mas também morais, que não podem ser impunemente transgredidas." ( João Paulo II, A Solicitude Social da Igreja (Secretariado Geral do Episcopado, Ed. Rei dos Livros, 1988), sec.34, pág.73)

CONCLUINDO

"Segundo a tradição ocidental dominante, o mundo natural existe para benefício dos seres humanos. Deus concedeu aos seres humanos o domínio sobre o mundo natural, e a Deus não importa como nós o tratamos. Os seres humanos são os únicos membros moralmente importantes deste mundo. A própria natureza carece de valor intrínseco, e a destruição das plantas e dos animais não pode ser um pecado, exceto se nessa destruição forem prejudicados os seres humanos."
( SINGER, Peter. Vida Ética. Ed. Ediouro, pág. 121)

Assim, concluímos que estes preconceitos se encontram tão arraigados por bases religiosas, que foram tomados como verdade sem serem questionados. Agora, porém a humanidade vive um importante momento de expansão da consciência coletiva e libertação de dogmas. Torna-se então, indispensável uma reavaliação geral de conceitos, especialmente aqueles ligados à relação do ser humano com a natureza. E, cada vez mais é evidente a necessidade urgente do resgate do amor e do respeito à todas as formas de vida, por parte do homem.