Artigos

SER CRIANÇA NA INTIMIDADE

Gilmar Ramos

Certa vez, algum tempo atrás, por volta dos anos sessenta, num determinado bairro da zona norte na cidade do Rio de Janeiro, uma criança de cinco anos, o Zequinha, olhava encantado para uma linda roseira florida que estava sendo regada cuidadosamente pela sua vizinha, uma senhora chamada Corina, e, dirigindo-se a ela, disse:
-Tia Corina, você pode me dar uma rosa dessas?
-Claro Zequinha! Mas para que você quer uma rosa?
-É para dá-la à minha mãe.
-É mesmo!? Por que?
-Porque ela é boa, bonita e bacana.
-Ah!! Que gracinha Zequinha!!!

Se olharmos com bastante atenção, de uma forma simples e direta para o que acontece nesse episódio, podemos perceber o quanto existe de poesia, o que, hoje em dia, é tão incomum devido ao processo de caricaturarização sofrido pelas pessoas expostas à cultura de massa.

O envolvimento desses três seres, o adulto, a roseira e a criança é promovido por uma expressão de vida natural das mais belas, uma roseira florida que, por ser bem cuidada, oferece sua beleza como retribuição, agradecida pelo cuidado que recebia de uma mulher, uma manifestação feminina, a tratar de algo tão delicado, delicadeza essa compreendida porque sentida.

Num segundo instante, me permitam até imaginar que o menino estivesse encantado com a singeleza captada naquele intervalo de tempo, o qual possui um outro significado, bastante distinto da noção do que seja "tempo" na atual e conturbada vida cotidiana.

Eu ousaria sintetizar esse momento com a palavra harmonia.

Ainda que os amigos leitores prefiram uma outra palavra que julguem melhor empregada, isso é o que menos importa, pois o fato de ter a consciência voltada para isso, já é um grande "barato" que alcançamos juntos, lembrando que até aqui só estamos abordando um pequeno e intenso momento de integração, de harmonia.

Quando entramos pelo ato da linguagem, que vem expressar as intenções da consciência por parte da personagem adulta, alguns dos vocábulos usados e grifados no texto chamam atenção pela conduta racional a qual requer explicações que justifiquem a forma de ser da criança que, em contrapartida, expressa seus sentimentos com autenticidade, com liberdade.

Vejamos então a fala da senhora Corina:
Julgando que crianças só querem, ou pior, a elas apenas seja permitido desejar brinquedos, objetos utilitários ao nível infantil, ela questiona ao menino: Para que? (qual a finalidade de você uma criança querer uma rosa?)
Depois da resposta do menino, existe um sinal de surpresa, de espanto por parte dela - É mesmo?! - (um espanto por constatar que há um certo equívoco em entender como egoístas certos comportamentos das crianças, pois esta não quer a rosa para si.)
Como se estivesse à busca de algo perdido dentro de si própria, ela continua questionando-o: Por que? (afinal, o que se faz mesmo com uma rosa?)
Ao obter a resposta do menino, ela percebe encantada - Ah!! Que gracinha Zequinha!! - que além de carinhoso, ele se permite expressar tal sentimento.

Eu pergunto ao querido leitor: quem não gostaria de receber um presente como esse, impregnado de tanto carinho? Aliás, que presente!!! Nada utilitário, sem valor financeiro, porém com profundos sentimentos revelados na escolha de algo que estivesse à altura desses sentimentos, nesse caso, uma rosa.

Quanta força poética existente na fala do Zequinha! Uma força que exclama a liberdade, a autenticidade em usar os próprios sentimentos como jóias raras a serem presenteadas a si ou a outrem.

Como diz o ditado popular, todos temos um pouco de criança. Essa criança tem resistido bravamente às pressões que sofre para crescer a todo custo, alienando-se dentro de nós, muitas vezes, sem que nos permitamos perceber. Ainda resta uma esperança, a criança pode crescer sem deixar de sê-la.

E você? Pode se considerar uma pessoa que cresceu absorvendo os encargos e responsabilidades próprias da vida adulta, porém mantendo uma criança grande e forte dentro de si?

Se a resposta for sim, meus parabéns, pois é muito bom saber que muitas roseiras podem ser bem cuidadas e que suas rosas podem ser um grande presente banhadas em carinho.

No entanto se, ao tentar responder, surgir alguma dúvida ou insegurança, que tal resgatar e fortalecer essa criança dentro de você?