SÍSIFO E A TRÍPLICE FUNÇÃO MERCURIANA

Luiz Claudio Moniz

O mito desse herói, filho de Éolo e portanto da raça de Deucalião, chamado de kérditos andrôn (o mais solerte dos mortais) por Homero, evoca a essência Hermes/Mercúrio através dos signos de Gêmeos (domicílio diurno), Virgem (domicílio noturno) e Aquário (exaltação), juntamente com suas respectivas casas relacionadas (3, 6 e 11).

Sísifo, do grego Sísyphos, que etimologicamente pode ser relacionado com sophós (sábio, instruído, inteligente, hábil, ou seja, qualidades típicas mercurianas), reinava em Corinto. Um belo dia, teve a oportunidade de comprovar o significado do seu nome ao desmascarar Autólico, filho e discípulo de Hermes, que havia roubado parte de seu rebanho e mudado a cor dos animais. Em visita ao ardiloso “colega”, (Autólico, nome composto pelos vocábulos autós = o próprio, e lýkos = lobo, significando que “ele próprio é um lobo”) o esperto monarca não encontrou problemas na recuperação de seus bois, pois teve a precaução de marcar os cascos dos mesmos.

A chegada do rei de Corinto coincidiu com a véspera do casamento da filha de Autólico, Anticléia, com Laerte. Durante a noite, Sísifo seduziu a noiva, que nove meses depois deu à luz o não menos astuto Ulisses (Odisseu), herói protagonista da “Odisséia”, de Homero. Uma variante diz que o próprio Autólico teria facilitado o pecaminoso encontro, afim de ter um neto perspicaz e arguto como o filho de Éolo.

Nosso herói, no entanto, provocou a ira divina ao contar ao deus-rio Asopo, que sua filha, Egina, havia sido raptada por Zeus, recebendo uma fonte em troca da preciosa informação. O pai dos deuses e dos homens para se vingar mandou Tânatos, a morte, mas Sísifo conseguiu astutamente encadeá-la. Com a morte presa, ninguém mais morria, e o reino subterrâneo empobrecia a olhos vistos. Ante a reclamação de Plutão, Zeus enviou Ares para resolver a situação. Solta, Tânatos fez de Sísifo sua primeira vítima. Como o rei de Corinto houvesse pressentido a ação dos deuses, deu ordens expressas à sua esposa, Mérope (a única das Plêiades a se unir a um mortal), para não lhe render as honras fúnebres. Sendo assim, desceu ao Hades sem o “revestimento” ritual, fato que aborreceu o deus subterrâneo, pois se tratava de um sacrilégio. Após colocar a culpa na mulher, conseguiu de Plutão a permissão para voltar ao mundo dos vivos e castigá-la devidamente, dando a sua palavra que retornaria logo em seguida. Uma vez em Corinto, esqueceu-se rapidamente da promessa feita e viveu por muitos anos, até que finalmente chegou a sua hora, e Tânatos veio buscá-lo em definitivo.

Para se redimir dos ultrajes feitos aos deuses, foi condenado a permanecer para todo o sempre no Tártaro, a região mais profunda do Hades, rolando uma pedra montanha acima. Ao chegar ao topo, a rocha, impelida pelo seu próprio peso, descia novamente para o vale, constituindo-se assim num eterno ir e vir.

Através de uma simples análise, pode-se perceber a tríplice função mercuriana no mito de Sísifo. Os episódios da descoberta dos bois roubados, da negociação com o deus-rio, do aprisionamento da morte, da sedução de Anticléia e da capacidade de convencer o terrível senhor do Hades a retornar ao mundo dos vivos, mostram, respectivamente, as qualidades de esperteza, tino comercial, habilidades manuais e a facilidade de levar qualquer um que seja na conversa, qualidades essas típicas de Gêmeos e da terceira casa (que para alguns astrólogos é também a casa relativa aos amantes).

Quando o rei de Corinto pediu uma fonte em troca da informação, agiu antes de mais nada, como um herói humanizador (Aquário, décima-primeira casa e Urano, a oitava superior de Mercúrio), adquirindo para sua cidade as águas que trariam fertilidade e prosperidade para o bem de todos, assumindo a essência do aguadeiro que serve ao seu povo, assim como Ganimedes serve o néctar aos deuses no Olimpo.

O castigo imposto a Sísifo por Plutão, finalmente nos remete ao lado virginiano do mito, onde o herói envolvido em uma catarse contínua, purifica o seu “êidolon” (simulacro que reproduz os traços exatos do falecido em seus derradeiros momentos). O filho de Éolo precisa aprender a ser humilde (palavra que assim como homem, deriva de húmus, terra), pois desafiou os deuses cometendo a hýbris, a ultrapassagem da própria medida, ou seja, a inflação egóica (o Leão, que antecede Virgem). Precisa aprender que a vida tem seu próprio ritmo e é regida por um eterno retorno, a roda das Moiras (as deusas do destino), e que nada pode transgredir suas leis impunemente. O fato de ter que empurrar a rocha e voltar a empurrá-la assim que a mesma escapa de suas mãos no cume da montanha, simboliza a necessidade de se adaptar às rotinas através da repetição, do trabalho incessante (sexta casa), vivenciando cada etapa do caminho. Aqui, não existem atalhos.

No fundo, todos nós temos uma pedra a empurrar e, assim como Sísifo, precisamos persistir na tarefa, eliminando nossas impurezas interiores até quem sabe, transcendermos o nosso Tártaro particular, para que possamos retornar ao convívio com os deuses, como “in illo tempore”, no começo dos começos.