Artigos

EROS E PSIQUÉ: O CONTO DE FADAS DA MITOLOGIA

Luiz Claudio Moniz

ros, do grego ErwV (Éros), significa, segundo Junito de Souza Brandão, desejo incoercível (irreprimível) dos sentidos, e parece derivar do verbo éresthai, que por sua vez quer dizer estar inflamado de amor. Sua genealogia é uma das mais ricas e complexas, talvez pela própria dificuldade que encontramos quando tentamos definir e expressar esse sentimento elevado que é o amor. Hesíodo, em sua “Teogonia”, descreve Eros como um deus primordial, tendo nascido do Caos, juntamente com Géia e Tártaro.

Já o romano Cupido (que parece derivar do verbo latino cupere, cujo significado é desejar ardentemente, ter desejos instintivos ou sensuais, cobiçar), ao que tudo indica, absorveu o mito do grego Eros.

Eros/Cupido, que na maioria das vezes aparece como filho de Afrodite/Vênus, constituía-se num instrumento de vingança e diversão da mesma. Certa vez, porém, o feitiço virou contra a feiticeira, como nos é narrado no belo conto de fadas da Mitologia Grega, intitulado “Eros e Psiqué”, que chegou até nós através do romance “Metamorfoses”, do autor latino Lúcio Apuleio.

Havia uma jovem chamada Psiqué (do grego yuch, que significa sopro, princípio vital), filha mais nova do rei de uma determinada cidade da Grécia, provavelmente da Grécia asiática (Ásia Menor), cuja beleza era algo indescritível. Com o passar do tempo, a linda princesa começou a ser cultuada como a própria encarnação de Afrodite, fazendo com que seus templos fossem esvaziando gradativamente, fato que irritou profundamente a deusa. Cheia de ódio e despeito, a filha de Urano resolveu vingar-se da pobre mortal. Chamando seu filho Eros, e beijando-o com os lábios entreabertos, induziu-o a acertar Psiqué com uma de suas famosas flechas, tornando-a perdidamente apaixonada pelo ser mais horrendo e desprezível que existisse na face da terra.

Preocupado com a adoração que as pessoas tinham por sua caçula, o rei consultou o Oráculo de Apolo, em Mileto, recebendo a terrível sentença: a menina, usando os tradicionais trajes fúnebres, deveria ser conduzida a um rochedo onde se uniria a um monstro.

Tudo seguia exatamente como Afrodite havia planejado, até que Eros, a caminho de sua repugnante missão, acabou por ferir-se com a própria seta, contaminando-se com o vírus da paixão. Esse era o destino traçado pelas Moiras, cujos desígnios não podem ser alterados nem mesmo por Zeus, o pai de todos os deuses e de todos os homens.

O deus do amor então mandou o vento Zéfiro conduzir a princesa, que havia adormecido, até o seu palácio, situado de acordo com uma variante, num deslumbrante vale. Ao acordar, Psiqué ficou extasiada diante de tanta beleza e suntuosidade e logo descobriu que seus desejos eram imediatamente satisfeitos. Tudo o que queria ou pensasse surgia à sua frente, trazido por mãos invisíveis.

À noite, Eros apareceu e, unindo-se à linda princesa, tornou-a sua mulher. Antes do nascer do Sol, levantou-se e desapareceu nos céus, depois de fazê-la prometer que jamais procuraria ver o seu rosto. Essa cena, contudo, foi se repetindo todos os dias e Psiqué acabou por se acostumar com a nova rotina.

As notícias do seu desaparecimento, porém, acabaram por ser difundidas e, assim como sua família, Psiqué sentia saudades. Um belo dia pediu ao seu misterioso marido para ver as irmãs. O deus, do alto da sua onisciência, advertiu-a dos perigos, porém, apaixonado, não resistiu às súplicas, feitas entre beijos e carícias.

Conduzidas por Zéfiro, as irmãs, ao chegarem à esplêndida morada da caçula, corroeram-se de inveja. Infelizes no casamento, procuraram destruir a felicidade da ingênua menina. Ao descobrirem que Psiqué não sabia quem era na realidade o marido, insinuaram que o mesmo deveria ser uma terrível serpente, o tal monstro do rochedo, que mais cedo ou mais tarde, acabaria por devorá-la. Aconselhada a desmascarar a fera, a jovem, completamente confusa, resolveu seguir as recomendações que lhe foram feitas.

À noite, depois de entregar-se ao esposo, que em seguida adormeceu, não perdeu tempo. De posse de um punhal e de um lampião, aproximou-se sorrateiramente. Quando iluminou seu rosto, não pode conter o susto, pois diante de si, encontrava-se a mais bela visão que jamais havia contemplado. Ao olhar para o lado, viu a aljava e as setas, e logo compreendeu quem era o seu misterioso marido. Emocionada, acabou ferindo-se em uma de suas flechas, o que fez com que uma gota de óleo caísse no ombro do deus, acordando-o imediatamente. Decepcionado e magoado pela quebra da promessa, Eros saiu voando e sumiu entre as nuvens do céu. Como que por encanto tudo à sua volta desapareceu e a jovem viu-se novamente no rochedo, agora completamente apaixonada e grávida, verificando com pesar, o fato de que era feliz e não o sabia.

Desesperada, atirou-se nas águas de um rio, mas o mesmo devolveu-a à terra. Consolada e aconselhada por Pã, Psiqué, decidindo recuperar o amado, saiu procurando-o de cidade em cidade.

Os acontecimentos então chegaram aos ouvidos de Afrodite, que completamente louca de ódio, foi ter com o filho (que sofria com a dor produzida pela queimadura), repreendendo-o com palavras severas e manipulativas, dignas de uma Grande Mãe devoradora.

Depois de pedir ajuda a Deméter e a Hera sem nada conseguir, Psiqué resolveu entregar-se à sogra, como última instância. A cruel deusa do amor, vendo-a então desamparada em suas mãos, infligiu à pobre menina uma série de castigos e torturas. Não satisfeita, impôs à bela nora quatro missões impossíveis.

A primeira consistia em separar por espécie, em uma única noite, muitos grãos, misturados em um monte enorme. Diante de tal tarefa, a jovem sentou-se e pôs-se a chorar. Formigas, que então passavam por ali, consternadas com a cena diante de si, resolveram ajudá-la. No dia seguinte, para desespero de Afrodite, o serviço lhe foi entregue.

Mais difícil era, no entanto, a segunda missão. Psiqué deveria trazer alguns flocos de lã pertencentes a carneiros violentos e carnívoros, que viviam próximos dali, e cujas dentadas impregnavam a vítima com um poderoso e letal veneno. A bela menina, completamente desanimada, já tinha resolvido atirar-se no regato que cortava a região dos terríveis ovinos, quando ouviu vozes. Eram os caniços das margens, dizendo que ela deveria retornar à tarde, depois que os animais houvessem mitigado a sede. Os flocos de lã, então, estariam lá, presos na vegetação. Fazendo o que lhe foi indicado, Psiqué retornou com seu precioso troféu, deixando a deusa do amor boquiaberta.

A terceira tarefa era a mais perigosa até então: encher um recipiente de cristal com as águas escuras da fonte que alimentava os rios infernais Cócito e Estige, fonte esta guardada por dois terríveis dragões. Mais uma vez, a menina, diante da impossibilidade do cumprimento da missão, desabou em lágrimas, fato que acabou por comover até o austero Zeus. O rei olímpico então enviou a sua águia que, tomando a jarra no bico, deu uma rasante e a encheu com o líquido.

Afrodite, incrédula diante do sucesso da jovem, encaminhou-a para a sua derradeira e fatal tarefa. Dando uma caixinha à amante de Eros, a deusa disse que ela deveria descer ao Hades e pedir à Perséfone um pouco do creme da beleza imortal e em seguida retornar. Aí Psiqué compreendeu que finalmente chegara o seu fim. Resignada, subiu em uma torre com o objetivo de atirar-se do seu topo, chegando mais rápido ao seu destino. A torre então, para surpresa da jovem, indicou-lhe a melhor forma de cumprir a tarefa. Ela deveria se dirigir ao cabo Tênaro, no Peloponeso, um dos caminhos que levam ao reino de Plutão, com dois óbolos na boca e um pão de mel em cada mão. Os óbolos eram a paga das viagens de ida e volta na barca de Caronte, e os pães de mel para entreter Cérbero, o guardião do Hades, sendo um para entrar e o outro para sair.

Uma vez nos infernos, Psiqué evitaria aceitar o banquete oferecido pelo rainha das trevas, contentando-se apenas com um pedaço de pão preto. De posse da caixinha, não deveria abri-la em hipótese alguma.

No caminho de volta, a curiosidade, tomou conta da esposa de Eros. O fato de estar trazendo nas mãos um creme que torna as deusas eternamente belas, sem no entanto poder usá-lo, mexia com a sua cabeça. Não agüentando a tentação, abriu a caixa. No mesmo instante foi envolvida por um sono esmagador e fatal, caindo desfalecida. Eros, que já estava recuperado e morto de saudades, foi, com a permissão do senhor do Olimpo, ao encontro da amada, salvando-a e conduzindo-a à mansão dos deuses. Lá Psiqué tornou-se imortal, consumindo o néctar e a ambrosia e a união dos dois enamorados foi abençoada por todos os presentes, inclusive por Afrodite, que convencida por Zeus, resolveu esquecer tudo. Tempos depois nasceu uma linda menina que se chamou Volúpia (que significa prazer e bem-aventurança). E assim Eros e Psiqué viveram felizes para sempre.

A bela história narra, de forma alegórica, um antigo e importante rito de passagem (cuja origem está, sem sombras de dúvidas, nos primórdios do matriarcado) que tinha por finalidade preparar a jovem para atingir a verdadeira essência do feminino, ou melhor, a sua própria individuação. O ponto culminante, é sem sombra de dúvidas, a última tarefa, que constitui-se numa morte simbólica, onde a velha personalidade infantil deve dar lugar à nova, agora adulta. A união definitiva de Psiqué com Eros traduz a coniunctio opositorum, ou seja, o encontro com o animus, indicando que houve uma verdadeira integração a nível interior.

Quanto ao amor, ah! o amor... Infelizmente, está muito longe de ser vivenciado em todo o seu esplendor, pois assim como os deuses, nós ainda não conseguimos administrar de forma satisfatória e plena esse nobre sentimento. Eros e Psiqué, na realidade, constitui-se num conto de fadas dentro do mito, pois o mito é a própria expressão da experiência humana ao longo do tempo e do espaço.