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O ASPECTO DESTRUIDOR E PSICOPOMPO DA GRANDE MÃE

Luiz Claudio Moniz

Durante o período que ficou conhecido como matriarcado, a Deusa ou Grande Mãe era a divindade principal de um panteão que no máximo, quando era o caso, possuía somente um outro ser divino, que geralmente era seu filho e amante. Ela abarcava praticamente todas as funções do universo e foi cultuada por inúmeros povos espalhados por todos as regiões do planeta.

Jennifer e Roger Woolger em A deusa interior, colocam o seguinte: "pesquisas sobre a pré-história da Europa levadas recentemente a cabo por arqueólogos como Marija Gimbutas mostram que a Deusa Mãe era adorada em toda parte há vários milhares de anos. A forma mais desenvolvida de reverenciá-la ocorreu aproximadamente entre 3000 e 1200 a.C., na Suméria, no Egito e na bacia do Mediterrâneo, onde era conhecida como Inana e Ísis, entre outros nomes. Reinando suprema como a Grande Mãe, ela era homenageada com uma gloriosa profusão de epítetos: Senhora das Plantas, Senhora das Feras, Mãe de Tudo, Deusa do amor, A Protetora, e inúmeros outros. É por isso que Graves referiu-se a ela como Deusa Mãe de muitos nomes. Essas designações reverentes dizem-nos que ela, enquanto divindade suprema, continha em si todas as possibilidades da existência: vida, morte, poder, juventude, velhice, sabedoria - e também o masculino e o feminino".

Uma dessas características primordiais e mais dramáticas da Grande Mãe é, sem sombra de dúvidas, o seu aspecto destruidor, ou seja, sua capacidade de conduzir (função psicopompo) e receber em seu seio os indivíduos depois da morte.

Além de nutridor, acolhedor, protetor e gerador, o feminino possui esse outro lado, obscuro e amedrontador. Erich Neumann, na sua magistral obra intitulada A Grande Mãe, diz que "o útero da terra torna-se a mandíbula dilaceradora e mortal do mundo inferior e, ao lado do útero fecundado e das cavernas protetoras da terra e da montanha, entreabre-se o abismo e o inferno, o buraco sombrio das profundezas, o útero devorador dos túmulos e dos mortos, da escuridão sinistra e do nada. Essa mulher que gera a vida e todas as criaturas vivas que há sobre a terra também é, ao mesmo tempo, aquela que devora e traga suas vítimas, que as persegue e aprisiona com laço e rede. [...] Esse Feminino Terrível é a terra voraz que devora os seus próprios filhos."

Segundo Joseph Campbell em O herói de mil faces, "nos livros do Tantra da Índia medieval e moderna, o local onde habita a deusa é denominado Mani-dvipa, Ilha das jóias. [...] a terra, o sistema solar, as galáxias do incomensurável espaço - tudo isso cresce no seu útero. Pois ela é a criadora do mundo, sempre mãe e sempre virgem. Ela abrange o abrangente, nutre o nutriente e é a vida de tudo o que vive. Ela é também a morte de tudo o que morre. Todas as etapas da existência são realizadas sob sua influência, do nascimento - passando pela adolescência, maturidade e velhice - à morte. Ela é o útero e o túmulo: a porca que come seus próprios leitões. Assim sendo, ela une o bom e o mau, exibindo as duas formas que a mãe rememorada assume, em termos pessoais e universais".

Nas mitologias de todo o mundo existem uma infinidade de Deusas Mães que ficaram conhecidas principalmente por exercerem essa atividade predadora da vida: as gregas Erínias (Aleto, Tisífone e Megera), Górgonas (Medusa, Ésteno e Euríale), Ártemis e Hécate; as romanas Fúrias; a hindu Kali; a egípcia Ta-Urt; a asteca Ilamatecuhtli; a celta Morgana; a babilônica Tiamat; e a sumeriana Ereshkigal, entre muitas outras.

Com o advento do patriarcado, houve o que se pode chamar de uma departamentalização da Grande Mãe, ou seja, um enfraquecimento gradual imposto pelos invasores indo-europeus através de sucessivos casamentos com seus deuses. Tais uniões acabaram por gerar várias outras divindades que se especializaram em atributos que antes pertenciam como um todo à Deusa. Dessa forma, como pode ser observado na mitologia grega, Afrodite se tornou a deusa do amor e da beleza, Deméter, a deusa da fecundidade, Hera, a deusa das uniões lícitas etc.

Contudo, a incumbência tanto de psicopompo quanto de governante das trevas em várias mitologias (mas não em todas), passou a ser atributo também de deuses, como é o caso de Hermes e Hades ou Plutão (Grécia), e Mercúrio e Dite (Roma), só para citar alguns.

A hegemonia patriarcal, no entanto, não retirou de algumas deusas os atributos que as ligavam à questão da morte. Ceres é um exemplo disso. Associada a Deméter, a deusa grega da agricultura, a divindade latina, de acordo com Junito Brandão em seu Dicionário mítico-etimológico da mitologia e da religião romana, "...rapidamente adquiriu outras atribuições: passou a ser também a protetora do casamento; era invocada nos funerais e acabou por tornar-se uma deusa dos mortos, que desciam para o mundus Cereris, o mundo de Ceres. Afinal os mortos são sementes que se plantam no seio da terra..."

Um dos casos mais ricos e interessantes é, sem a menor dúvida, o da deusa germano-escandinava Freia. Ela é a deusa do amor e da beleza, filha de Niord e Nerthus e irmã gêmea de Freyr. Seu nome significa senhora e sendo assim, é uma das divindades mais importantes e respeitadas da mitologia nórdica.

Loura de olhos azuis, é casada com Od (em uma variante aparece como esposa de Odin) e tem uma filha chamada Hnoss. Freia é a representação da primavera, o que pode ser comprovado analisando o simbolismo da andorinha, ave consagrada à deusa. Este pássaro é o mensageiro da estação das flores, e a sua chegada e partida coincidem respectivamente com as datas exatas dos equinócios. Sendo assim, ele representa a luz e a fecundidade.

Nos mitos nórdicos, Freia é sempre desejada pelos gigantes do gelo, que vivem tentando possuí-la. Aí podemos ver a velha e eterna batalha entre o inverno e a primavera, a noite e o dia, as trevas e a luz, ou seja, entre o bem e o mal. Tal como o gelo se espalha por toda parte nos invernos rigorosos e escuros das latitudes setentrionais, os gigantes querem se apossar de Freia, ou melhor, da própria natureza, e com isso perpetuar sua ação devastadora, forçando prematuramente a chegada do Ragnarök, o apocalipse escandinavo.

Outra ave consagrada à deusa é o falcão, que também está associado à luz, já que é uma representação do Sol. Freia possui uma pele de falcão, transformando-se no pássaro toda vez que a veste.

Quando quer passear pela terra, a deusa viaja em sua carruagem que, como pode ser visto na Edda, o épico islandês que narra os mitos dos deuses e heróis escandinavos, é puxada por dois gatos. Segundo Heinrich Niedner, em seu livro Mitologia nórdica, "os gatos de Freia simbolizam as maliciosas carícias e as alegrias sensuais"6, fato corroborado por Jalaja Bonheim, quando diz em Goddes - a celebration in art and literature: "contudo, ela também possuía uma carruagem na qual geralmente viajava puxada por gatos, seus animais favoritos, que simbolizam o carinho, a meiguice e a sensualidade." Aliás, qualquer bom livro de runas que se preocupa com a parte mitológica, o que é fundamental para o aprendizado correto do oráculo, traz estas informações.

Richard Wagner, o grande maestro dramaturgo, em O ouro do Reno, ópera que faz parte da inigualável Tetralogia, trabalha o arquetípico tema do conflito entre o amor e o poder. Aqui Freia é o centro de uma negociata entre Wotan (o Odin germânico) e os gigantes Fasolt e Fafner. O rei dos deuses contrata os gigantes para construírem um palácio inexpugnável, o Walhalla, e promete dar a deusa do amor em troca do serviço. Wagner modificou um pouco a mitologia fundindo a deusa Idun, a guardiã das maçãs douradas, a Freia. Fasolt queria a deusa por sua beleza, mas Fafner, cuja personalidade é mais esperta e cruel, vê com a posse da divindade, uma maneira de destruir os deuses. O fato é que sem os mágicos frutos de Freia, Wotan e os demais estão condenados ao envelhecimento e à destruição. A deusa é, então, a responsável pela vida.

Contudo, a morte está presente na essência de Freia, como não poderia faltar na idiossincrasia de uma autêntica Grande Mãe. Ela também é a rainha das Valquírias, as amazonas nórdicas, cuja função é resgatar os mortos nos campos de batalha para engrossar as tropas dos deuses no confronto final, o Ragnarök (destino dos deuses). De acordo com o mito, metade desses homens vão para o seu palácio chamado Sessrúmnir, que significa "o que tem muitos tronos". A outra metade era escolhida por Odin.

Assim sendo, podemos dizer a partir das análises feitas acima, que Freia é uma verdadeira e completa Grande Mãe, pois abarca praticamente todas as suas funções. É esposa, pois tem como marido uma divindade chamada Od (ou Odin); é mãe, já que deu à luz a bela Hnoss; é sensual (arma do feminino para atrair o macho para o hierós gámos, a união sagrada); é criativa e fecunda, sendo a própria representação da primavera, ou seja, da vida; e possui também o lado psicopompo e destruidor, pois como Imperatriz das Valquírias, conduz e recebe os guerreiros em seu acolhedor regaço, o palácio Sessrúmnir.

Clive Barrett, foi imensamente feliz ao colocar Freia como sendo a Imperatriz do seu Norse Tarot. Na lâmina, ela surge imponente em trajes de Valquíria, em meio a um trigal dourado e maduro. Grávida, tem a seu lado um gato, enquanto duas andorinhas voam à sua volta. A runa Jera, cujos significados são colheita, abundância e fertilidade, entre outros, foi associada ao Arcano pelo autor, aparecendo na borda inferior da carta.