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O ARQUÉTIPO DO HERÓI

Sidneya Magaly Gaya

O arquétipo do herói aparece repetidamente no tempo e no espaço como a capacidade humana de auto-superação, de reclamar a própria origem divina e a imortalidade, de identificar, criar e seguir seu próprio e único caminho, transformando a si mesmo e à sua interação no mundo. Aqui, o mundo (o Reino), é transformado por osmose a partir do crescimento espiritual e do polimento do caráter do herói. Suas habilidades pessoais são treinadas devidamente e postas a serviço do contexto e neste processo suas potencialidades, até então desconhecidas, lhes são reveladas de forma semelhante às revelações de proteção espiritual (aliança com os deuses, seus protetores).

Cada herói tem seus próprios instrumentos, suas próprias habilidades, seus próprios problemas. Persival tem muita coragem e o rei adoecido para curar através da compaixão e tomada de consciência, (precisa iniciar sua jornada respaldado por sua coragem, mas curar o rei a partir da compaixão, não da coragem). Tem a ajuda de mulheres (ânima) no caminho mas mesmo assim demora a desenvolver a sensibilidade sugerida no contato amoroso com o feminino. Orfeu, tem muita compaixão, empatia e sensibilidade que desenvolveu com muita dedicação, mas sua prova final é de confiança, fé e entrega à vida e à morte. Dionísio precisa desmembrar-se para renascer sensibilizando não só ao reino mas principalmente aos reis, às divindades, renovando a aliança divina com o mundo mortal. Ulisses é um herói estrategista, brilha no mundo frio do intelecto e ganha muitas batalhas por seus dons e alianças com Atena, mas ao fim lhe é pedido que desça ao mundo obscuro das emoções e dos sentimentos e redima sua auto-imagem arrogante, para que seu cansado coração errante possa finalmente aportar. Midas e Dédalo têm o dom de prosperar materialmente, concretizar, mas precisam reavaliar os valores materiais em comparação aos valores afetivos, espirituais e intelectuais. Precisam também aprender a distribuir riquezas sem ganância.

Alguns pontos em comum, contudo, fazem parte da jornada. Primeiramente, a prontidão para atender ao chamado, que, por ser bastante subjetivo e espiritual, pode ser considerado sutil ou confuso, uma necessidade incômoda de buscar, corrigir, conhecer, obter algo que aparentemente pode configurar-se muito difícil, distante ou até mesmo injustificável. Pode tratar-se de uma carreira, uma pesquisa, uma jornada física, mental, espiritual, viver a dois, viver sozinho, viver diferente daquilo que se aprendeu, desenvolver dons psíquicos, espirituais, artísticos, cognitivos, políticos, sociais, ou em qualquer área que pareça incomodamente atraente, atiçando com a inveja a princípio, por exemplo; aí está o nosso chamado.

A prontidão para atender ao chamado em geral implica um corte de laços, um dizer não ao passado e às bases que nos sustentam, libertar-se e sair do conforto e segurança familiares (amigos, família, grupo de trabalho, ou crenças arraigadas) e é aí que o herói deixa o conforto da "Mãe" e vai buscar seu lugar no mundo, sendo que este lugar e seu real funcionamento ainda não está claro nem mesmo para ele. É apenas uma atração, um anseio... que por mais nítido que lhe pareça, na maioria das vezes é ainda muito diferente do que virá a ser.

Por vezes, o primeiro chamado é para a entrega, especialmente para aqueles que estão habituados à resistência. A entrega a um relacionamento, a uma terapia, à fé no Poder Superior, a uma espécie de auto-sacrifício ou de sacrifício consciente (em geral temporário) de habilidades de luta e envolvimentos com o mundo exterior, voltando o foco de atenção aos sentimentos, ao espaço mais que ao tempo, e ao contexto imediatamente próximo de relacionamentos e fatos. Abrir mão de grandes propósitos em função de outros aparentemente mais simples e prestar muita atenção no poder de transformação das pequenas coisas.

Uma sensação de desacordo com a posição que ocupamos, bem como uma análise dos motivos de tal inadequação, podem nos dar a sugestão do caminho a seguir. Há um sentimento forte de inadequação: algo não está funcionando como deveria; o que fazemos não gera mais satisfação. O contexto no qual estamos inseridos nada tem a ver conosco. A crise da falta de significado e propósito está instalada e a depressão bem definida ou subjacente é apenas uma questão de tempo. E o herói precisa resgatar o significado aprisionado, corrompido ou até reconstruí-lo a partir de nossa jornada, partindo em nossa luta pessoal para matar um dragão, fundar uma nova sociedade, resgatar o elixir que foi roubado ou perdido, curar o rei, expulsar os bandidos do reino, explorar novas terras, libertar a princesa, o mago, ou oferecer-se em sacrifício.

Sua jornada, assim, está repleta de perigos internos e externos. Tanto a resistência por parte dos que fracassaram e agora tentarão impedí-lo, quanto seus próprios defeitos de caráter identificados e ou projetados no seu dia-a-dia parecem assombrá-lo e ele precisa desenvolver qualidades de insight,atenção aos propósitos, perseverança, convicção e amigo leais para poder sobreviver e não voltar humilhado para seu lar de infância. Se no início o medo da solidão, da rejeição, da incapacidade de sobrevivência a partir dos próprios recursos e escolhas podem assustá-lo, mais tarde os perigos podem ser mais palpáveis, como as traições, as perseguições e as limitações contextuais.

Até o mágico momento em que consegue expressar seu poder e sua verdade com tanta clareza que consegue o tão sonhado êxito na batalha, pode a partir daí contagiar seu universo circundante com seu intenso poder pessoal. A sensação aqui é a de estar no lugar e momento certos, fazendo o que é preciso de acordo com sua natureza única e brilhante, a um só tempo humana e divina. Uma espécie de comunhão consigo mesmo, com as outras pessoas e com a Terra.

Após o amadurecimento de suas potencialidades que caracteriza basicamente a criação de um ego saudável, tornando-se porta-voz e mediador das necessidades e contribuições inconscientes, bem como das coletivas e sociais de forma equilibrada e ativa, o herói vê-se frente à próxima etapa da jornada, composta pelo movimento de descida, onde necessita encontrar-se com sua "sombra", entregando seu "heroísmo particular", apreendendo em seu mistério mais profundo o sentimento da mortalidade, da efemeridade e da entrega frente ao que "não pode ser transformado."

Este é um processo diferente, porquanto espiritual, onde a disposição para a luta cede lugar à alegria e resignação genuinamente humanas. Onde o humanitarismo, o pacifismo, a esperança e a alegria de viver plenamente o presente, simplesmente fluem, gerando prosperidade. Ao aceitar a própria mortalidade, depois de empreender toda uma jornada heróica em busca da imortalidade, o herói aprende a "estar consigo", com alegria e inteireza, para, desta forma, com sua simples presença, continuar com sua contribuição evolutiva ao universo.